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Brasil perde espaço no ranking de riqueza global
Qual o peso de nascer no bairro em que você nasceu para a sua trajetória? E das condições socioeconômicas da sua família?
O economista Michael França, 37 anos, nasceu e cresceu no bairro Costa Teles 1 em Uberaba, Minas Gerais.
Filho de uma trabalhadora doméstica que estudou até o primeiro colegial, França se tornou doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e foi pesquisador visitante em universidades como Columbia e Stanford. Sua biografia poderia ser lida como uma narrativa clássica de ascensão pela educação.
Mas, ao pesquisar as desigualdades sociais, França percebeu que a realidade é mais complexa.
Embora reconheça que o estudo abra portas, ele mostra em sua pesquisa que a escolaridade, sozinha, não basta para compensar o peso de fatores como gênero, raça e lugar de nascimento.
Esse conjunto de circunstâncias é o que chama de "loteria do nascimento". "Pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante.
Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre", afirma. Na USP, França foi o único aluno negro de sua turma de mestrado e doutorado.
"Se eu soubesse lá atrás o quão rara era aquela minha presença ali, talvez tivesse desanimado.
Talvez eu não teria me esforçado", afirma o pesquisador.
Nas últimas décadas, o avanço das políticas públicas afirmativas nas universidades mudou a cara das universidades no Brasil.
O Programa Universidade para Todos (Prouni), por exemplo, completou 20 anos em 2025, custeando a formação de 3,5 milhões de estudantes em todo o país.
Mas o economista, hoje coordenador do Núcleo de Estudos Raciais (Neri) do Insper, defende que isso ainda não foi suficiente para alterar, de fato, a desigualdade da sociedade brasileira.
"A expectativa é que quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda, começará a acumular riqueza e romperá o ciclo.
Mas não é bem assim", diz.
"Existe a ideia de que a desigualdade existe porque não há educação de qualidade — e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos." França, que já venceu o Prêmio Jabuti Acadêmico, lança nesta quarta-feira (20/8) o livro A Loteria do Nascimento: filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico (Editora Jandaíra), em São Paulo.
A obra é em coautoria com o sociólogo Fillipi Nascimento. Abaixo, confira a entrevista com o pesquisador. O economista Michael França se debruça em estudar desigualdades no Brasil Arquivo Pessoal via BBC BBC News Brasil - O que é a "loteria do nascimento"? Michael França - A loteria do nascimento é a ideia de que as circunstâncias pelas quais você nasceu — o local, a família, o gênero, a raça — influenciam nas chances e oportunidades que você vai ter na vida.
Isso é bem documentado pela literatura empírica, aquela baseada em dados e análises estatísticas robustas.
Há muitos estudos nos Estados Unidos, mas também no Brasil e na Europa. Esses estudos mostram que, por mais que as pessoas queiram colocar o esforço como determinante central, ele ajuda, mas só até determinada parte dos resultados que você vai atingir na vida.
Porque, dependendo do local em que você nasce, do seu gênero, sexualidade, raça ou classe socioeconômica, isso vai afetar seus resultados. Claro, se você tem um irmão gêmeo, vindo de uma situação muito semelhante, é evidente que aquele que se esforçou mais tende a ter resultados melhores nas áreas em que se dedicou.
Isso gera o que alguns estudiosos chamam, no debate sobre desigualdade, de desigualdade justa: as oportunidades são parecidas e as diferenças vêm das escolhas e do esforço de cada um. Mas, no caso brasileiro, grande parte da desigualdade é injusta, porque os indivíduos têm pontos de partida muito diferentes.
Esses pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante.
Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre.
Por mais que essa mulher se esforce, a chance de ela atingir determinados resultados será mais baixa.
Não quer dizer que ela não vá conseguir, mas terá que colocar muito, muito mais esforço. BBC News Brasil - O subtítulo do livro traz o título de uma coluna sua na Folha: "Filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico".
Pensando nas políticas públicas que tivemos nos últimos anos, que melhoraram alguns acessos, como ao das universidades, quais são ainda os obstáculos para a mobilidade social no Brasil? França - Escrevi esta coluna na Folha justamente com esse nome e ela viralizou quando publiquei, especialmente no LinkedIn.
Percebi que havia ali um certo sentimento de frustração. Nos anos 1980 e 1990, as universidades no Brasil eram o parque de diversões das elites, basicamente.
Não havia tantas universidades, a porcentagem da população com ensino superior era muito baixa e o prêmio salarial para quem tinha diploma era muito alto.
A ideia era que, se você tivesse ensino superior, estaria em outro patamar de status na sociedade, já que era algo escasso. Nos anos 2000, se inicia um processo de democratização, com a construção de mais universidades públicas, a criação de muitas privadas (mesmo de baixa qualidade), programas como Prouni e Fies, e as ações afirmativas das cotas.
Muitos indivíduos de origens desfavorecidas viram a universidade como a grande oportunidade de ascender socialmente.
Havia essa ideia de que, se você terminasse a faculdade, estava feito — ficaria rico no Brasil. Essas pessoas fizeram um superesforço: estudavam, trabalhavam, moravam longe, pegavam transporte público.
Conseguiram se formar.
Alguns melhoraram muito de vida e, na média, todos tiveram alguma mobilidade social em relação a seus pais.
Mas houve quem não avançasse muito, quem ficasse desempregado durante a crise de 2015, quem não conseguisse trabalhar na área desejada, virasse motorista de aplicativo ou entregador. A ideia do livro é trazer essa discussão: mesmo com nível educacional elevado, classe social, raça e gênero continuam influenciando o mercado de trabalho.
A educação não zera a loteria de nascimento.
A expectativa é que, quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda e começará a acumular riqueza.
E romperá com um ciclo.
Mas não é bem assim. Podemos deixar de lado a questão racial e de gênero e olhar só para a classe: um indivíduo rico e outro de baixa renda, ambos formados, excelentes alunos e produtivos.
Mesmo com qualificação igual, o de alta renda tem uma rede de contatos melhor, o que lhe garante oportunidades superiores. E mesmo que ambos tivessem a mesma rede de contatos, o patrimônio familiar muda tudo: quem é rico pode arriscar mais, estudar no exterior durante crises, esperar por empregos melhores.
Já quem é de baixa renda sente pressão para começar a trabalhar rápido, manter um estágio mesmo sem gostar, sustentar a família. Além disso, mesmo que filho do rico e filho do porteiro entrem no mercado de trabalho em uma mesma função, o rico terá mais oportunidades, pois seu background cultural é mais próximo ao das lideranças da empresa.
Ele sabe falar sobre viagens internacionais, música erudita — códigos culturais distantes da realidade do filho do porteiro.
Essa diferença de referências cria afinidade com quem está no poder. Quem vem de fora precisa assimilar valores, cultura, forma de falar e vestir para se sentir pertencente — e, muitas vezes, não quer abrir mão da própria identidade, o que pode gerar crise existencial.
A saúde mental entra aí: muitos jovens de baixa renda não têm histórico familiar de discutir saúde mental.
Isso melhorou um pouco após a pandemia, mas antes não era comum.
Enquanto isso, jovens ricos muitas vezes já têm acompanhamento psicológico desde cedo e acesso à medicação. Também há a penalidade pela maternidade, que impacta fortemente mulheres no mercado de trabalho, e o assédio, que torna muitos ambientes tóxicos e afasta profissionais. BBC News Brasil - Sobre saúde mental, você já falou um pouco do custo social para quem ascende e faz essa mobilidade.
Qual o custo para quem "ganha" nessa loteria do nascimento? França - Quem nasce em família rica não tem culpa disso.
Mas pode haver dois caminhos. Você pode ter aquela pessoa preguiçosa, que não faz nada, só quer viver do patrimônio dos pais e quase nada produz de bom — nem para a sociedade, muitas vezes nem muito para si.
E há aquelas que nascem em ambiente privilegiado, mas aproveitam as oportunidades que têm, se desenvolvem como seres humanos, tentam aprender várias habilidades.
Enfim, têm uma certa preocupação social e tentam ajudar na medida do possível. Mas, ao mesmo tempo, em vários casos existe uma pressão.
Num país muito desigual, ser muito privilegiado afeta também afeta o lado psíquico dessas pessoas. Muitas vezes, no íntimo, elas são muito frágeis.
Por exemplo: a pessoa nasce herdeira e tenta se esforçar, mas, por algum fator, não vai muito bem na escola ou faz escolhas pouco assertivas, por motivos biológicos ou não.
Olhando de fora, parece que ela teve todos os privilégios — e, de fato, teve —, mas ainda assim enfrenta dificuldades.
E, claro, são pouquíssimas histórias assim.
Mas há também o inverso: pessoas que saíram de condições muito desfavorecidas e cresceram na vida. Tem também a questão da autoestima: muitas vezes, pessoas de baixa renda, apesar de mais resilientes, e sei que esse termo é chato de usar porque muitas vezes essa resiliência vem de muito sofrimento e esforço, têm autoestima menor.
E, em outros casos, pessoas mais ricas têm um "poço" de autoestima.
Essas questões psicológicas são muito curiosas, e eu queria estudá-las mais.
Mas, no mundo da economia, não dá para aprofundar tanto assim. BBC News Brasil - Recentemente Lula tem explorado o discurso entre ricos e pobres, principalmente em torno da pauta da taxação das grandes fortunas.
E tem sido acusado, por outro lado, de fazer "nós contra eles".
Como você avalia a forma que o governo tem usado esse debate? França - O governo vinha cometendo várias "bolas fora" em diferentes questões durante um bom tempo.
Agora, com essa pauta, retomou uma bandeira um pouco mais à esquerda, e isso foi uma "bola dentro" no sentido de gerar ganho de visibilidade e popularidade para Lula.
É um tema um percentual alto da população apoia. O "nós contra eles" é, a meu ver, um subterfúgio das classes dominantes para continuar sem abrir espaço.
O problema central do Brasil é que o país não é só desigual na forma como taxa as pessoas — com os mais pobres pagando um esforço fiscal muito maior do que os mais ricos —, mas também é desig...